Aproveito
esta ocasião para pedir, com o maior empenho, a V. Ex.ª sr. Ministro, uma
providência que reputo fundamental: um inquérito às condições de
desenvolvimento físico da nossa juventude. Parece que não faltam indícios de
que não são as melhores.
Senhor
Ministro, conhece V. Ex.ª o verdadeiro estado da educação física e dos nossos
desportos – o número insignificante de praticantes do desporto particular e
os cuidados de que precisa a educação física escolar. O que mais
aflige o Comité Olímpico não é, propriamente, a dificuldade de se colherem os
loiros olímpicos, mas a falta de um
impulso sério e convicto a favor da Escola: tempos livres para a prática
obrigatória dos exercício, provas de aproveitamento em certos escalões,
melhoria de instalações, aumento de quadro do pessoal do ensino,
Nobre
Guedes (1893-1969)
Pres. do COP (1957-1968)
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Pedidos, lamúrias, queixas, e
ranger de dentes deste teor, leio, ouço e vejo desde a adolescência. Portanto,
uma vez mais Vicente Moura é o porta-voz do CIO, e o CIO é um organizador de
espectáculos à escala mundial quadrienal.
Traduzido em português seco e
directo, o CIO deseja muitos atletas fora de série para encher os palcos, e
aumentar a bilheteira, pelo que tem todos as embaixadas com a designação de
Comités Nacionais Olímpicos. O sonho de Coubertin de levar a prática desportiva
à juventude, sob o falso chapéu do amadorismo, transformou-se em pesadelo, e a
teoria do caos, a imprevisibilidade, veio à tona de água. Como ?
Quando o desporto despontou, muitos
jovens jogavam e não havia assistência. Depois, com a visibilidade de fenómenos
fora de série, inverteu-se o sistema: poucos jovens jogavam e a assistência
aumentou. Aumentando a assistência, aumentou a capacidade dos estádios.
Metaforicamente cavalo passou do passo para o trote, e do trote para o galope.
E, quem diz aumento da capacidade dos estádios, está a induzir mais bilheteiras,
mais dinheiro, mais lucro.
A partir daqui os JO deixaram de
ser Desporto, para se transformar num Espectáculo Desportivo Quadrienal. Deixou
de ser o Desporto de Muitos (sem
assistência, mas muita gente a praticar) para passar a ser o Desporto de Alguns
(muita assistência, mas pouca gente a praticar).
É assim que os valores tradicionais, como
atributos do desporto, se transformaram em máquinas de incentivos financeiros,
o que seria contrário aos ideais olímpicos. E na verdade era contrário aos
ideais olímpicos apenas para os atletas que teriam de ser amadores e não
profissionais; mas já não era contrário aos ideias olímpicos para o CIO que
enchia os cofres à custa de amadores.
A propaganda agressiva
desencadeada pelo CIO para manter o amadorismo entre os atletas olímpicos era
uma forma de evitar a compensação monetária dos atletas, arrecadando a
totalidade do produto resultante dos Jogos Olímpicos.
Os atletas olímpicos começaram a
ver que entrava muito dinheiro para as elites do CIO, e tudo à custa do esforço
exigido nos treinos. Então o CIO autorizou, muito contrariado, que as federações
oferecessem o “prize money”, para compensar os atletas das despesas de preparação.
O CIO ficava à margem, limitando-se a conceder esse favor.
Este golpe do CIO alterou todo o
sistema desportivo mundial, arrastando as Federações Internacionais, e consequentemente
as federações nacionais, a aceitar as regras iníquas do amadorismo. Porquê iníquas
?
Coubertin seguiu a linha inglesa concebida
para o significado de amadores que eram
os homens da classes média e alta,
responsáveis pela organização e codificação do desporto. Uma das medidas foi a
de segregar os da classe baixa pela
imposição de um amadorismo rígido. Sociologicamente o amadorismo aplicava-se apenas
às classes superiores, enquanto o profissionalismo
abarcava as classes baixas, urbanas e operárias.
Fotografia dos atletas amadores, ora membros do CIO, em regime de benevolato,
presentes nos primeiros Jogos de Atenas.
Sentados da esq. para a dir.: o Barão P. de Coubertin, secretário (França): D. Vikelas, presidente do CIO (Grécia); o General A. de Boutovsky (Rússia).
De pé da esq. para a dir.: Sr. W. Gebbardt (Alemanha); Jiri Guth-Jarkosky (Checoslováquia); François Kemany (Hungria); o General Viktor Balek (Suécia)
Fonte: Otto Mayer, À travers les anneaux olympiques
ed. PierreCailler, Genève, 1960
Dito de uma forma clara, expedita
e directa, o desporto só seria praticado pelos amadores das camadas superiores dado
usarem diariamente as suas etiquetas de fair play, modéstia na vitória e dignidade
na derrota. Jane Austen, a autora de “Orgulho e preconceito” apresenta este delicioso diálogo entre dois
personagens, à passagem de um aristocrata a cavalo:
- Quem é aquele homem ?
- É o Darcy…
- E o que é que ele faz ?
- Nada.
- Ah! Então é um gentleman…
Portanto, o amador é o que não
faz nada, o que não trabalha, o que vive dos rendimentos, o gentleman, e tem
tempo para a prática desportiva. Ora esta concepção não cabia no carácter do profissional que era primitivo, perigoso,
aberto à fraude, ao suborno, à corrupção.
O que traduzido significava que
os dignitários não se juntavam à classe
dos trabalhadores manuais e braçais, porque tinham uma profissão, logo, eram profissionais. Mas não do desporto
Estas filosofias para uso de
determinada classe social, abriu brechas nas Federações Internacionais porque
se desentendiam sobre os malabarismos da semântica, e os atletas começaram a reclamar, nos
Campeonatos Mundiais e Internacionais qualquer coisa mais do que simples
medalhas. O tempo dedicado ao treino e o esforço desgastante mereciam algo mais
do que encher os cofres das Federações. A Associação Internacional de
Representantes de Atletas enfrentou a IAAF para abrir a bolsa ou os atletas deixavam
de participar, colocando a IAAF numa posição delicada perante o CIO.
A campeã olímpica argelina dos
1500 metros, Hassiba Boulmerka, disse aos organizadores do Edinburgh’s Princess
Street Mile que, ou pagavam mais ou não participava, e saiu. O CIO perguntou a
um tenista, pela vida de ostentação que levava, onde ganhava tanto dinheiro,
levando como resposta: “A jogar às cartas com o meu treinador, e ele perde
sempre”. Mas os exemplos não se esgotam aqui. Nos países do leste os atletas eram convocados para o serviço militar, para poderem treinar o tempo todo, e batotas deste jaez foram proporcionadas pelo CIO. Um cavaleiro sueco, sargento do exército, foi promovido a oficial para poder participar, porque sargento, na concepção olímpica, era profissional, enquanto um oficial era amador.
O CIO avisou que as Federações
Internacionais podem fazer as regras que entenderem sobre esta situação, com a
certeza de que não seriam aceites pelo próprio CIO, ponderando que se
corre o risco de pôr em perigo a universalidade.
Mas a culpa maior cabe ao orgulho dos países que participam nos Jogos
Olímpicos porque consideram o evento como uma competição pela pátria, o que
constituía para o CIO a garantia de que os Jogos são para durar.
Portanto, os países que não tenham mais nada que fazer, devem trabalhar
afanosamente para encher os cofres do CIO, e a juventude que espere pelo dia em
que os governos se preocupem mais com os
jovens do que com as medalhas olímpicas.