terça-feira, 6 de março de 2012

O “espirro” de Cavaco e a entrada dos 40.000


Publicado no blog “De Rerum Natura”, em 3 de março


Nova crónica recebida de João Boaventura:

*O Carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.*
Mikhail Bakhitin, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento

*O Carnaval era uma representação do mundo virada de cabeça para baixo.*
Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna

Lembrança se retoma para testemunhar como, durante o regime socrático, o nosso Presidente da República passou por momentos triplamente tensos: o de ser de todos os portugueses, o de acompanhar e viver a crise, e o de defrontar um primeiro ministro de ideário diferente, transportando consigo algum distanciamento, mas o chamado regime democrático impôs-lhe aparências, exactamente como o “fair play” ou as “good manners” constituíam rituais de boas etiquetas nas cortes monárquicas, e entre os nobres, compaginadas com as marginais e humanas intrigas palacianas.

De formações e origens diferentes, esteve sempre patente o incómodo patenteado pela Presidência durante a longa travessia do regime socrático, cujos sinais se exteriorizavam no retraimento com a comunicação social, a fuga a respostas mais concretas, a evasiva a explorações mediáticas, o ar severo e retraído, o distanciamento, o fechamento como nova figuração de tabu, o quase auto-silêncio, não fossem alguns palavras a mais gerar polémicas desnecessárias, para evitar o confronto de Belém com S. Bento.

Tinha apenas o porte de Hobbes que, no seu “Leviatan”, falava muito na sua timidez e acanhamento, o que não o impediu de lançar uma nova e arrojada interpretação do homem e do Estado, que lhe valeu a perseguição dos presbiterianos ingleses e dos clericais franceses, o que, di-lo ele, o levou a tomar a atitude de “refugiado”. Até aqui fica apenas o esquisso da similitude da primeira parte do retrato entre Hobbes e Cavaco, com a ressalva de que, enquanto Hobbes tem uma concepção mecânica e matemática do mundo, onde tudo se reduz a corpos e movimentos, “onde as paixões e as emoções são movimentos interiores, determinados pelos movimentos exteriores”, resultando em “fantasias”, Cavaco vive apenas no mundo da “fantasia”, no “faz de conta”,

Acontece porém que a segunda parte do retrato se inverte porque, com a eleição de Passos Coelho, do PSD, a transfiguração do tímido e acanhado converte-se no “refugiado do outro regime” que entra no terreno da sua inscrição, no retorno ao ideário de origem. Belém e S. Bento fundem-se numa instituição, graças à colaboração do CDS, o que já lhe permite abrir o jogo político, a discordância aberta e declarada com o jovem primeiro ministro, cuja inexperiência lhe abre completamente as portas para se introduzir na área governativa e económica, sem temor. Novos horizontes se lhe abrem e em tão momentosa crise, pode apresentar-se como a oportuna e atempada salvação do país.

A insistente discordância com as medidas que Passos Coelho vai anunciando, oblitera-lhe a prudência e a contenção, porque no seu currículo constam as duas únicas maiorias nacionais alcançadas para governar, nas eleições de 1987 (50,2 votos, e apenas 28,4 abstenções), e de 1991 (50,6 votos e 32,2 de abstenções), contra a minoria governativa de Passos Coelho, nas eleições de 2011 (38,6 votos, mas 41,97 abstenções), o que, somado à sua inexperiência, à coligação pós-eleições com o CDS, e ter enfrentado uma votação da abstenção superior aos votos obtidos, o coloca em posição fragilizada. Este cenário permite-lhe afrontar o governo com uma impertinência que destoa do homem tímido e acanhado.

Acaba por criar um espectáculo incómodo entre Belém e S. Bento, a que a sociedade vai assistindo, entre o incrédulo e o espanto, que obriga Cavaco, para animar os esfomeados e inanimados portugueses, a justificar-se, por afecto, e em resposta a “milhares de cartas de idosos e pensionistas a queixarem-se de falta de meios de subsistência”, que também se sente frustrado já que “tudo somado, quase de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas, porque também não recebo vencimento como Presidente da República” (CM, 20.01.2012).

Cavaco passa de “refugiado do outro regime” a “refugiado dentro do próprio regime”.

Chegados a este ponto, assiste-se agora a uma petição de 40.000 assinaturas com o fim de solicitar a demissão do Presidente da República, lembrando de certa forma o episódio da “Anábasis”, onde Xenofonte narra que, havendo uma situação de dúvida, entre o permanecerem os 10.000 homens na luta ou prosseguirem a marcha, ao espirro de um soldado foi decidido prosseguir, porque o espirro era de bom augúrio. Se a comparação é permitida, a infeliz tirada de Cavaco ressoou com um “espirro” de mau augúrio porque 40.000, não prosseguiram na marcha, entraram em combate.

Não imagino se chegados a este Carnaval lusitano se devemos rir ou chorar, mas socorramo-nos do Sermão de António Vieira à Rainha Cristina da Suécia, para nos dar a resposta:

“Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorância, e não há ignorância que não seja miséria”.

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