quarta-feira, 20 de junho de 2012

Indigência moral


Artigo de António Bagão Félix saído no Público de 17 de Junho de 2012, na página 55, que se agradece a disponibilidade  para a publicação no blogue.

A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias.
Completam-se uma à outra e constituem no seu conjunto a expressão do “homem autêntico”
(Raymond Aron)
“ A olhar a mentira dos salões esquecemos a verdade das celas”
(Miguel Torga)

Desde 2008, o mundo vive em crise económica e social. Mas sobretudo e endemicamente em indigência moral. Portugal, também. 


A regra de ouro no plano ético tem sido frequentemente violada: para alguns, os fins justificam sempre qualquer tipo de meio. Para tal, “inventou-se” um novo arquétipo moral entre os actos bons e os maus: os actos indiferentes, uma espécie de silenciosa amiba onde se acolhem as maiores perversidades.

A ética da primeira pessoa (a auto-exigência) deveria ser sempre a primeira condição para a ética da terceira pessoa (ser-se exigente com os outros). Infelizmente todos os dias se observam distorções deste contrato moral. E parece cada vez menos considerado o imperativo kantiano: Age unicamente segundo a máxima que te leve a querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei de tal modo que, se os papéis fossem invertidos, as partes em questão estariam sempre de acordo.

As pessoas simples não entendem e indignam-se legitimamente. As elites exemplares escasseiam, a procura do bem comum dilui-se, ao mesmo tempo que brotam como cogumelos as falsas elites feitas de arrivismo e calculismo. O respeito pelas regras legais ou comportamentais tem sido menosprezado por certos grupos e grupúsculos de interesses partidarizados, particularistas ou secretistas que, não raro, ousam capturar o interesse público.

Permita-se-me a imagem caricatural: parar no semáforo vermelho é quase um sinal de inadaptação social nos tempos que correm.

De há muito, assiste-se a formas iníquas de promiscuidade e de disfarce de interesses privados e públicos, ao sôfrego domínio de certas instituições fundamentais por pessoas impreparadas, sem currículo e que as usam despudoradamente em benefício próprio. Já lá vai o tempo em que para se ocupar um lugar de alta responsabilidade política, institucional ou empresarial eram sempre necessárias provas de vida, de experiência e de responsabilidade efectiva. A exigência que Roland Barthes exprimiu dizendo que “um responsável nota dez: dois pontos de esforço, três pontos de talento e cinco pontos de carácter” já não é o critério essencial.

Órgãos decisivos como o Tribunal Constitucional ou a Provedoria de Justiça têm vindo a ser sujeitos à mais descarada descaracterização pela via afuniladamente partidária.

A indigência moral alimenta-se da falta de memória corroída pela primazia do presentismo, da impunidade de que, no fim, nada acontece, do escrutínio para “inglês ver” onde os sem-poder são penalizados e se desculpa quem viola as mais elementares regras éticas. Uma pequena irregularidade pode ser fatal, uma grande fraude perde-se na neblina processual. Os indefesos, os últimos, os sem voz são vistos crescentemente como uma quantidade, ao mesmo tempo que há todo o tipo de salamaleques e toda a panóplia de consideração hipócrita para pessoas ou entidades não recomendáveis.

A aliança entre o fardo da burocracia e a exaltação da tecnocracia desumaniza as instituições, coisifica as pessoas e gera tentações corruptivas. Em muitas instâncias de diferentes naturezas, reforça-se o primado dos objectivos monetarizados, mas esfumam-se as referências, os princípios e os ideais. Mais do que nunca, parece valer-se não pelo que se é, mas pelo que se tem ou se insinua ter.

A verdadeira liderança vem do exemplo, não do poder formal e efémero. Há na governação, nas instituições, nas empresas, na sociedade, notáveis exemplos de rectidão, serviço público e hombridade. No entanto, a perspectiva axiológica do uso do poder como poder-dever é cada vez mais a excepção. No frenesim de micro, pequenas e médias éticas, a sociedade vem-se tornando mais amnésica e dilui-se a fronteira entre o útil, o inútil e o fútil.

O direito ao erro e a pedagogia da persistência perante a dificuldade são, muitas vezes, substituídos pela ilusão do facilitismo, da permissividade e da “troca” em circuito-fechado.

Não devemos confundir o erro, inerente à nossa condição humana, com a irresponsabilidade, a ganância, a cupidez. Erro não implica culpa, mas culpa tenta justificar-se pela (falsa) inocência de um erro inventado.

Não são os cargos que fazem as pessoas, são as pessoas que fazem os cargos. Mas está na moda separar a pessoa da função e a função da pessoa, como se o carácter fosse divisível.

O incentivo ao mérito e a ética da sabedoria integral e do esforço honesto são, não raro, abafados pela defesa da mediocridade e de igualitarismos bacocos que afastam os melhores, mas são esplendorosamente retributivos para toda a espécie de “boyismos”.

Há quem diga que a ética é tão-só o cumprimento escrupuloso da lei. Acontece que o conjunto das normas jurídicas e o conjunto das normas éticas jamais coincidem. Há muitas regras de conduta ética que não estão juridicamente plasmadas. A ética não se estrutura na dicotomia legal / ilegal, mas radica na consciência. O conjunto do que é moralmente aceitável (o legítimo) é mais restrito do que é juridicamente aceitável (o legal). Nem tudo o que a lei permite se nos deve impor, e há coisas que a lei não impõe mas que se nos devem impor. Nenhuma lei proíbe em absoluto a mentira, a desonestidade, a deslealdade, a malvadez, o ódio, o desprezo, a vilanagem… Como nenhuma lei só por si assegura a decência, a verdade, a generosidade, a temperança, a prudência, a exemplaridade, a integridade, a autenticidade, a honradez, a coerência ou a sensatez. Recente estudo europeu sobre práticas corruptivas refere que “ a corrupção se materializa, por vezes, em práticas legais mas anti-éticas que resultam de regras de lóbi opacas, tráfico de influências e portas giratórias entre o sector público e privado”.

A pessoa tem mais deveres éticos do que o cidadão. A consciência de uma pessoa honesta é mais exigente do que o produto de um legislador porque a lei é o limite inferior da ética.

Também a linguagem tem sido sujeita a uma anestesia ou mudez moral que favorece o relativismo ético. Hoje o mentiroso não mente. Diz inverdades. Certas fraudes já não o são.

Foram promovidas tecnocraticamente a imparidades. Um conflito de interesses até pode não o ser. Diz-se, então, que cria sinergias. A batota depende do batoteiro. A ética do esforço conta menos. Vale mais a esperteza arrivista. O valor da exactidão esvazia-se. O que conta é o calculismo da inexactidão. A flexibilidade é palavra de ordem para tudo, até mesmo para o carácter e conduta moral. A iconografia do sucesso, mesmo que aparente substitui a iconografia dos valores, mesmo que imprescindíveis.

A ética pura, dura e intensiva vem-se relativizando pela abordagem quantitativa e pelo contexto condicional ou adversativo. Por onde escapam e até têm sucesso os menos escrupulosos. O carácter e a decência passaram a andar de mãos dadas com um qualquer “se”, “mas”, “talvez”, “quase sempre”, “salvo se” ou “mais ou menos”. Em ética não há o meiotermo, lugar geométrico da indiferença onde tudo vale por nada valer.

Em suma, não há remédios técnicos para males éticos. Esta é a mais séria e profunda reforma estrutural e geracional que urge concretizar na sociedade portuguesa. Sem ela, não há troika que nos valha…

António Bagão Félix
Público, Junho de 2012

5 comentários:

  1. O texto é exemplar...

    Mas compare-se este texto com o do mesmo autor a 10.11.2011 no jornal «A Bola», página 2, onde escreveu:

    "Sou um benfiquista com uma relação indestrutível de monogamia clubística. Seja qual for o contexto, a modalidade, o momento, não imagino outra situação que não a vitoriosa. Sei quantas vezes a imersão emocional me obnublia a emersão racional. Aliás, é esta transmutação que me conduz a desfrutar, sem peias, o prazer da parcialidade."

    Reparare-se, "sem peias", no "prazer da parcialidade"...

    E continuava: "De facto, não há - creio - adepto a cem por cento que não seja parcial. Com militantismo. De outro modo, é porque a paixão é menor do que a que julga possuir."

    Ainda bem que só é uma crença... até porque John Stuart Mill afirmou no seu livro «Sobre a Liberdade» (1859) que “as nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.”

    Retirem-se as devidas conclusões...


    Um abraço!

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  2. Caro Armando Inocentes
    Eu diria que a questão que levanta é daquelas que costumo colocar aos meus alunos:
    1 - Pode o benefício de uma actividade desportiva ser um co-produto e ser uma externalidade?
    2 - Deve um presidente de um clube sem finalidade lucrativa ter lucro na actividade produtiva do seu clube?
    A questão que coloca é se é possível ter princípios éticos definidos pelo texto 'Indigência moral' e simultaneamente assumir 'sem peias' o 'prazer da parcialidade' o pertencer por inteiro a um grande clube desportivo?
    Eu responderia: mas existe outra forma de o fazer?
    Um abraço

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  3. A resposta às minhas duas questões são:
    1 - o benefício no co-produto está interiorizado e na externalidade o benefício é apropriado por um terceiro que nada pagou pela sua produção.
    2 - o clube desportivo necessidade de ter lucro contabilístico sob pena de falir. Não tem de ao decidir a sua gestão visar a finalidade lucrativa dos seus actos.

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    1. Mesmo que o fulcro do texto de Bagão Félix concite a uma reflexão filosófica oportuna á volta da Ética e do que dela tece o indivíduo e e se move a sociedade, e o comentário de A. Inocentes se mantenha no mesmo registo, o dr. Fernando Tenreiro acaba por passar ao lado e converter tudo numa conversa para contabilistas puros e duros! Parece que o Mundo não passa de uma mercearia, e neste caso de "produtos desportivos"!! Haja Deus!!
      Joel

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    2. Infelizmente só o conheço por anónimo.

      Você sabe que eu me chamo Fernando Tenreiro, que há um Bagão Félix e um Armando Inocentes que arriscam contradições e assumem o nome próprio por baixo.

      A única hipótese de discutir consigo as contradições em presença era você identificar-se.

      A sua argumentação é por si restringida ao usar o anonimato.

      Adiante,

      Os exemplos que eu dei não são de mercearia, são de economia do desporto. Eu tentei fazer duas analogias entre a economia e a ética, que ainda me parecem adequadas. Se me convencer da sua inadequação poderei reconsiderar.

      Já antes me tinham chamado à atenção para o artigo de Bagão Félix acerca da posição clubística.

      Diria que o segundo texto veio esclarecer como a posição clubística assenta sobre os fundamentos éticos apresentados.

      Por último, note-se que em nenhum momento ninguém falou de corrupção, violência ou qualquer outra marginalidade à ética. A discussão feita por Bagão Félix parece ser um risco tremendo por parecer ser preto e branco simultaneamente.

      A questão que noto era a oportunidade de se formular o clubismo em termos distintos do realizado por BF.

      Que não se concorda com a explicação, está compreendido. Agora falta justificar a ética da filiação num determinado clube, alternativa à formulação de BF.

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