Publicado em 02.11.2012 no DE RERUM NATURA
Todos, na entrada da vida, se ignorantes não são, e o conhecimento enxergam, começam pelo registo de nascimento, o que representa o primeiro passo da parte dos progenitores, perante a incapacidade do nascituro. Ficou assim registado que Guilherme Centazzi, já lá vão dois centenários, nasceu a 20.11.1808, em Faro.
Todos, na entrada da vida, se ignorantes não são, e o conhecimento enxergam, começam pelo registo de nascimento, o que representa o primeiro passo da parte dos progenitores, perante a incapacidade do nascituro. Ficou assim registado que Guilherme Centazzi, já lá vão dois centenários, nasceu a 20.11.1808, em Faro.
Dos registos escolares, de
Coimbra, foi possível verificar, nos três anos lectivos de 1825-1826,
1926-1927, e 1827-1828, na Relação dos estudantes matriculados na Universidade de Coimbra. – 1801-1865,
quais foram os resultados obtidos pelo estudante Guilherme Centazzi, filho de António
Centazzi , natural de Faro. Rua Larga ,
N. 101, e se indicam no seguinte
quadro:
Ficha do estudante Centazzi
matriculado na Universidade de Coimbra
Anos 1825-1828
Ano lectivo
|
Ano de
Frequência
|
N.º
inscrição e Disciplinas
|
Categoria
|
Morada
|
Rua
|
1825-1826
|
1.º ano
|
9 – Mat.
|
Voluntário
|
Faro
|
R. Larga, 101 [1]
|
.. – Fil.
|
..
|
..
|
..
|
||
1826-1827
|
61 – Mat.
|
Obrigado
|
Coimbra
|
Arco das
Cruzes
|
|
68 – Fil.
|
|||||
1827-1828
|
2.º ano
|
24 – Mat.
|
|||
17 – Fil,
|
Os preparatórios aos estudos de medicina exigiam Matemática e Filosofia, daqui a razão da frequência do
primeiro ano da primeira disciplina, ignorando-se os motivos de não se ter
inscrito em filosofia. Com efeito, Centazzi revela na sua confissão que aos dezassete parti para Coimbra[2], que condiz com a idade atingida em
1825. Como na Relação dos estudantes do
ano lectivo 1826-1827, inscrito está nas duas disciplinas, aluno Obrigado no 1.º ano - n.º 61 em Matemática, e n.º 68 em Filosofia – significa
ter perdido um ano lectivo, por falta de proveito numa e por não se ter
inscrito na outra, factos que omite nas
suas confissões, possivelmente contrariado por considerar que os pais o tinham condenado aos estudos de medicina
(…), sem saber o que faziam[3], ou por alguém o ter “honrado” com o título
de doidivanas, esquecido da idade que por norma rima com
estouvamento e imprudência.
Na relação dos estudantes de
1827-1828, consta a inscrição no 2.º ano como Voluntário, em Matemática, com o n.º 24, e em Filosofia com o n.º
17, dando como morada a rua Arco das Cruzes (hoje Beco das Cruzes), de Coimbra,
deduz-se que frequentou o primeiro ano com
aproveitamento, porque assevera que no meu segundo ano (1828) fechou-se a
Universidade em Maio por causa da guerra entre Dom Pedro e seu irmão Dom Miguel[4]. De
facto, as graves perturbações políticas e sociais provocadas com o regresso do
Infante D. Miguel, recém chegado de Viena, em 22.02.1828, levou ao
encerramento, pelo período de quase um ano, da Universidade de Coimbra, por
Carta Régia de 23 de Maio de 1828, tendo sido reaberta por Carta Régia de
27.03.1829.
Entretanto, a morte do pai, sem
deixar bens, fê-lo depender do irmão, liberal, tenente do real corpo de engenheiros, nosso único amparo, o
que o terá levado a inscrever-se no batalhão académico de Coimbra, de 1828, de
que resultou, segundo escreve, dois
ferimentos de bala; treze meses de clausura, escondido em casa[5]. Entre ficar e continuar nas guerras
liberais ou exilar-se, tomou a decisão – possivelmente em Junho de 1829, fim da
clausura – expressa no manuscrito:
(…) Parti para Paris, onde comecei os
meus trabalhos, vivendo parcamente da resumida mesada que meu extremoso irmão
me mandava, coadjuvada, durante alguns meses, pelos 45 francos que o governo
francês deu aos emigrados portugueses a título de subsídio (…) e a gratificação que me deu a escola de
medicina de Paris pelos meus serviços prestados durante a cólera na vila de
Surene (…)[6].
Se no combate à cólera, em 1832,
frequentava Centazzi o 3.º ano de Medicina, o facto de se ter abalançado a
editar um manual, edição do autor, Traité
sur la manière de placer les os avec promptitude dans leur position respective (ed.
Trinquart Libraire, Rue de l´École de Médecine, 91 / Chez l’Auteur, rue de Bussy, n.º 38 / Paris, 1833), quando ainda
frequentava o 4.º ano do curso, significava que as ajudas seriam ainda
insuficientes, mesmo incluindo as do amigo Bernardo José Fernandes,
proprietário de um bergantim e de uma escuna, meios utilizados para importar cereais
dos Açores e do Brasil, nos anos do vintismo[7];
e que nos anos 30 exerceu ainda o cargo de tesoureiro da Câmara Municipal de
Lisboa, para acudir aos pobres refugiados
com os socorros possíveis ou sopa económica[8]. Mesmo assim ainda teve os recursos
proporcionados pela rabeca e pelo canto, com que a natureza o dotara, dando
espectáculo num teatro de Paris, sem citar qual, o que reforça os altos custos
do curso exigidos na inscrição trimestral das respectivas disciplinas: 4
trimestres por ano, ou seja, 16 trimestres até final do curso.
Não foi possível obter todos os dados deste estudante da Faculté de Médecine[9]
(mesmo local da actual Université Paris
Descartes), sita na rue de l'école de médecine 12, durante os 4 anos de estudo, desde Junho
ou Julho de 1829, data provável da sua chegada e inscrição no curso, em 1 de
Outubro[10]
de 1829, ou de 1830 no caso de ter perdido o 1.º ano, como em Coimbra – Centazzi
é omisso nesta matéria – até à conclusão
do mesmo, em 9 de Agosto de 1834, data em que se licenciou como médico, e,
segundo registo seu, “aprovado nemine
discrepante”, ou seja, por
unanimidade, depois de defender a sua tese n.º 250, porque os dados dos estudantes, conservados
nos Archives Nationales-Fontainebleau-Paris-Pierrefitte-sur-Seine,
só podem ser utilizados em 2013, data em que a totalidade da transferência dos
arquivos para a nova sede ficará concluída e acessível ao público..
Sabe-se que pelo dispositivo normativo
de 02.02.1823, a Faculté de Médecine,
que tinha sido fechada, reabriu totalmente reorganizada com 36 professores
agregados para substituir os professores titulares das respectivas disciplinas
teóricas e práticas (orientadas para a clínica), sempre que necessário e
justificado, para que não houvesse qualquer interrupção nos estudos, donde Centazzi
terá colhido os benefícios da actualização dos estudos e os melhores
ensinamentos, nos dois âmbitos.
Fac-simile da
capa da tese de Centazzi, à esquerda, e anfiteatro, à
direita, onde o Médico terá assistido às aulas na Faculté de Médecine (Fonte: BIU
Santé, Paris)
Imagem da fachada da Faculté de Médecine,
em 1829, à esquerda, ano em que Centazzi terá possivelmente entrado, e à
direita, a mesma fachada melhorada , em
1834, ano em que Centazzi defendeu a tese e terminou o curso. (Fonte: BIU Santé, Paris)
(Continua)
[1] Esta Rua Larga, segundo apurei, se porventura mal, parece já não existir
em Faro. O urbanismo altera tudo. Mas este blog chama a atenção para o facto de
existir a <a
href=http://dererummundi.blogspot.pt/2012/08/a-rua-larga-revista-da-reitoria-da.html>revista
Rua Larga</a> da Reitoria da Universidade de Coimbra, desconhece-se, se
por mera casualidade, se alguma ligação simbólica com a primeira morada
indicada por Guilherme Centazzi quando se inscreveu na referida Universidade.
Fique, ao menos, o coincidente e simpático registo
[2] In Prefácio
do I vol. do romance <a href=http://www.guilhermecentazzi.com/?ln=pt&mm=16&sm=72&ssm=76>A
alma do justo</a>, ed Typographia de F. X. de Souza & Filho,
Lisboa, 1861
[3] G. Centazzi, Op.cit.
[5] Id.ib.
[6] Id.ib. Há
aqui, ou um lapso de memória, ou uma gralha tipográfica. Centazzi está a
referir-se à Cidade de Suresnes, na margem esquerda, Altos do rio Sena,
atingida pela 2.ª pandemia de cólera (1826-1841), mais precisamente em Março de
1832, quando frequentava o 3.º ano de Medicina. De 19 de fevereiro a 1 de Outubro de 1832, esta epidemia matou mais de 18.500 parisienses. Lisboa também
foi atingida pela segunda pandemia de cólera em 1833.
[7] Vide “Ordens das Cortes”, de 12.02.1822”, in Diário das Cortes Gerais, Extraordinárias
e Constituintes da Nação Portuguesa, 2.º ano da Legislatura, Imprensa
Nacional, Lisboa, 1822, p. 166
[8] In Crónica Constitucional de Lisboa, n.º
44, de 14.09.1833, p. 834
[9] Até 1808 tinha « le nom bizarre d’École de Santé », segundo o Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales Dechambre, Ed. G. Masson, Paris, 1876, Tomo 5, p.645. Mas hoje em dia as Faculdades de Desporto adoptaram a bizarra disciplina da Saúde.
[10] Imposto pelo décret du 17 mars 1808.
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