quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

[3] SOCIOLOGIA DO DIREITO DESPORTIVO NA MONARQUIA CONSTITUCIONAL

Post publicado no blog De Rerum Natura, em 15-01-3013



We should not forget that theory is secular. Theory whether is an end or a means, will require the following to have greater significance in the sociology of sport: (a) a healthy division of labour, (b) a deliberate effort to accumulate, (c) a greater intellectual independence, and (d) acknowledged  coexistence.  
                                                                                                                   Kenion (1986)


3. Os reflexos do campo do corpo na irrita legislação

Ao longo de toda a Monarquia constitucional, desde o último quartel do século XIX, ou melhor, desde a Regeneração, e já no primeiro terço do século XX, em plena República, a actividade legislativa respeitante às actividades físicas, educacionais, e militares, foi bastante extensa, mas pouco intensa, pela fraca ou nula aplicação, por ignorância umas vezes, por exauridos os recursos outras vezes, ou por escassa vontade política, outras.

A passagem ritual do século XIX para o século XX, ao institucionalizar-se a nova Constituição, caucionou-se uma nova política, mas, na área governativa, o campo político limitou-se a dar continuidade à legiferação, resultando daqui ter sido o ordenamento normativo, mais o produto da disputa entre os interesses das facções partidárias e políticas do que a resposta ao campo do corpo, obnubilando, intencional ou inadvertidamente, a reconhecida necessidade de legitimar e institucionalizar as actividades físicas.

 Legislava-se, ou na convicção de que se transmitia a preocupação do governo, em matéria que dizia respeito ao exercício do corpo, à saúde, ou, de que a multiplicação de leis patentearia a ideia de que os deputados se afanavam na procura de respostas e de soluções, quando na verdade sedimentavam a ideia de que as protelavam. Criavam-se normas perfunctórias para calar as poucas e fracas críticas, e responder às vagas e frouxas pressões, mas, de maneira inócua, porque legislar não era aplicar nem executar. Donde, se o Estado legislava e não cumpria nem aplicava o articulado das leis, o cidadão colhia o exemplo de que também a impunidade lhe assentaria caso não cumprisse as normas que se impunham. O Estado, inconscientemente, cultivava e legitimava o desrespeito pelo Direito, e alienava a última porta da sua autoridade - a ética. Os decisores estavam decididos a não decidir.

Havia contudo quem se convencesse de que o liberalismo era a porta aberta para o respeito pelas leis, como deu conta esta Carta que hum provinciano escreveu a um seu amigo da mesma província sobre a observância das leis [1], onde, o incógnito autor perorava desta forma:

(...) já vejo um notável melhoramento com a nossa regeneração Politica, pois que as Leis se mandam cumprir exactamente, e se castiga o que abusa do seu cumprimento; e é isto o que nos faltava, pois não se observando a Lei não pode existir a Sociedade, na certeza de que sendo a mesma Lei uma razão que definida pelo comum consentimento, manda, e determina o modo, com que se há de fazer: uma oração grave, e recta, que manda o que se há de obrar, e proíbe o que se não deve fazer. (1821:3)


E porque, às vagas e frouxas pressões, se responde com vagas e frouxas leis, ficam assim, por agora, e de alguma maneira, sumariamente explicitados os fundamentos das inexpressivas, irreais e ilusórias normas jurídicas prodigalizadas pelos sucessivos governos, apostados em não mandar “o que se há de obrar”.

No cômputo geral, e porque se vivia em sociedade, chegava-se a esta conclusão: faziam-se leis que, embora publicadas, não eram feitas para se aplicarem, e as leis que deviam ter sido publicadas, para serem aplicadas, nunca foram elaboradas. Eram normas mortas, sem vida, sem expressão, e sem futuro, destinadas a figurarem na colectânea de leis dos respectivos governos, como se o dever do legislador fosse o de cumprir um ritual legífero. Seriam meras encenações jurídicas, esquecido o legislador da célebre frase lapidar, do deputado Fernandes Tomás, no despontar do liberalismo: “As actuais Cortes Constituintes, não estão fazendo Leis para Legisladores, mas sim para Povos (...)”,[2]   O que seria lapidar e exemplar, se aplicada fosse a citação.

Nem na designação da folha oficial do governo se mantinha o desiderato de acertar na titulação, tantas foram os títulos que lhe conferiram como se verifica neste quadro:



Mutação das Designações da Folha Oficial do Governo
Desde
Até
Gazeta de Lisboa                                                 
16 Set. 1808
30 Dez. 1820
Diário do Governo           
1 Jan. 1821
10 Fev. 1821
Diário de Regência        (até à chegada de D. João VI)        
12 Fev. 1821
4 Jul. 1821
Em 4 Jul. desembarca em Lisboa D. João VI vindo do Brasil


Diário do Governo     (após a chegada de D. João VI)          
5 Jul. 1821
4 Jun. 1823
Gazeta de Lisboa
5 Jun. 1823
24 Jul.1833
                 Em 24 Jul. entrada do exército Liberal em Lisboa


Crónica Constitucional de Lisboa 
25 Jul. 1833
30 Jun. 1834
Gazeta Oficial do Governo
1 Jul. 1834
4 Out. 1834
Gazeta do Governo
6 Out. 1834
31 Dez. 1834
Diário do Governo
1 Jan. 1835
31 Dez. 1859
Diário de Lisboa
1 Nov. 1859
31 Dez. 1868
Diário do Governo
2 Jan. 1869
9 Abr. 1976
Diário da República
10 Abr. 1976
2013

Era um desassossego permanente como que em busca de porto seguro que pudesse transferir ou conferir às leis nelas ínsitas, maior credibilidade, legitimidade e alguma licitude, e, em caso de dúvida da semântica normativa, o recurso ao  in dubio pro reo estaria implícito no corpus da lei. Mas não passava de uma rotina consuetudinária a marcar o território de cada regime, ou dentro do regime a marcar a mudança das regulações 'passadas.

Se não se consideram fáceis as relações entre o campo político e o campo do corpo, tampouco serão as interacções entre o campo político e o campo jurídico. Este campo de jogos entre os quatro campos foi explorado por  Ejan Mackaay (1991: 65-89), sob o título de Le droit saisi par le jeu, considerando que a teoria dos jogos opera uma distinção fundamental entre os jogos de conflito puro, os jogos de simples coordenação e os jogos mistos, esclarecendo que nos primeiros há uma oposição total, uma guerra declarada, dados os desencontros entre o campo político, v.g. e o campo do corpo, já que os interesses de um são totalmente opostos aos do outro; os de simples coordenação pressupõe o diálogo para fugir aos conflitos, uma convenção pela defesa das duas partes para evitar a violação de uma das partes, de que deu testemunho o sindicalista João Proença ao declarar que a convenção assinada por ambos, Sindicato e Estado, foi violada pelo Estado. Mas o Estado, em tal matéria não é virgem.

Os jogos mistos patenteiam as dificuldades de cada campo se dissociar dos seus interesses, por desinteressados, na convicção de que o outro alguma vez pretenda um acordo ou convenção. É o que se passa presentemente entre o Ministério da Educação e o campo do corpo, quando aquele pretende encurtar o tempo da disciplina de educação física, e o segundo se opõe. Com o senão de que nem um nem o outro se dispõem a desligar-se dos seus interesses.

Ver-se-á como, através dos diferentes regimes políticos, os exemplos se  frutificam.

Se da Monarquia absoluta se passou para a Monarquia constitucional, isto é, para o liberalismo, ou dito de outra forma, das leis ditadas pela vontade do monarca, para as leis legitimadas pela vontade popular, a apetência normativa não diferenciou o novo poder popular do antigo poder monárquico. E a sua multiplicação não respondeu nem correspondeu às promessas que prenunciavam, minando as expectativas, semeando ilusões, alimentando desilusões, e inculcando frustrações. José António Barreiros considera que o século XIX se caracterizou:

(...) por uma actividade legislativa fervilhante, cujo início se reporta precisamente aos meses imediatamente seguintes à própria revolução de 1820, o que se compreende atentando por um lado, no movimento de ampla renovação jurídica que então grassava na Europa e, por outro, nas necessidades de alteração institucional emergentes da própria revolução e do seu acidentado percurso.[1]


Nem será lícito argumentar qualquer ignorância ou desconhecimento em matéria à qual o próprio Diário do Governo, então com o nome de Gazeta de Lisboa, dava guarida, dedicando algumas páginas às actividades físicas, independentemente de outras publicações avulsas, com especial destaque para as dos médicos. A menos que a sua inserção na folha oficial pretendesse manifestar o intento de comunicar e propagandear, por este processo, um declarado e expresso interesse por uma causa legítima, mas, na prática, o campo político desvanecia-se, porque fora de todas as prioridades no entendimento do campo do corpo. E porque esse será o estigma dos poderes instituídos sobre as actividades corporais, dar-se-á agora alguma notícia, sem exaustão, das referências saídas a lume,

Notas

19 Na Typographia de Bulhões, Lisboa, 1821.
20  Frase proferida na 195.ª Sessão das Cortes de 2 de Outubro de 1821 (Vide DG n.º 235, 4.10.1821). O Diário do Governo será sempre abreviado em DG.
21 Vide “As instituições criminais em Portugal no século XIX: subsídios para a sua história”, in O Século XIX em Portugal, comunicações apresentadas ao colóquio organizado pelo Gabinete de Investigações Sociais, Colecção Análise Social n.º 9, Lisboa, Novembro de 1979

Referências

(1821) Anónimo. Carta, que hum provinciano escreveo a hum seu amigo da mesma Província sobre a   obsercancia das
                              Leis. Lisboa: Na Typografia de Bulhões (Com Licença da Comissão da Censura).
(1986) Kenion, Gerald S. "The significant of social theory in the development of Sport Sociology", in  Sport and Social
                              Theory. Champaign, Illinois: Human Kinetics  Publishers, Inc. (USA)
(1991) Mackaay, Ejan, “Le droit saisi par le jeu”, in Droit et Société, 17/18, pp. 65-89). Paris : L.G.D.J.



  













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